sábado, 11 de outubro de 2014

Eu, Zélia e as Muitas Marias

Hoje a postagem seguirá outro ritmo e tom. Não falarei sobre receitas veganas, vegetarianas, ou sobre posturas ambientais. Porém, não estarei fora do meu "estado crítico" [no sentido racional da palavra e não fisiológico].

Abaixo, trago uma reflexão, talvez utópica, talvez errônea, não sei, mas que brota de um coração sincero. 

Não desejo convencer ninguém, tampouco provocar. 

O desabafo parece ser meu móvel primevo. Se não for, adiante saberei.


Quando decidi assumir um segundo casamento, junto comigo veio a Zélia, uma ajudante que estaria bem perto, ombro-a-ombro, ao longo de todos estes anos, assumindo comigo os serviços da casa, cuidando da horta, dos animais e, vez ou outra, do meu filho.

Zelia tem dez anos a mais que eu. Nasceu no Paraná, em família simples, trabalhadores da roça. Ainda pequena, precisou assumir o cuidado dos irmãos mais novos que ela, além de ajudar nas plantações dos donos do sítio - uma família de japoneses que, por sorte, eram bondosos para com eles. 

Como acontece com muita gente deste Brasil imenso [em tamanho e desigualdades], ela também não teve oportunidade de estudar. Foi aprender a ler e escrever, pouco tempo atrás.

Quando nos conhecemos, tive a impressão de estar vivendo algo como um casamento arranjado, pois assumi a casa e ela entrou na mesma semana, indicada pelo meu marido.

Não sabíamos nada uma da outra e teríamos de conviver diuturnamente, tentando alinhar nossos mundos, nosso jeito de ser e de viver. E, demos certo! Sabe por quê? Porque nos respeitamos e nos cuidamos, desde o primeiro instante em que nos vimos.

Poucas pessoas se dão conta da grandiosidade que existe no trabalho de uma assistente do lar. A arte da convivência nossa de cada dia implica muito mais que a questão das técnicas de limpeza e cuidado, mas demanda amor, dedicação, empatia, doação.

Zelia nunca foi apenas uma “empregada doméstica” [coloco entre aspas, porque a forma como usamos este termo faz-me lembrar dos resquícios da escravidão, uma vez que os parcos direitos destas pessoas só foram reconhecidos há pouco, em nosso país]. Foi e é bem mais que isso. Ela doa seu tempo, sua energia, sua saúde por todos nós, dia após dia, semana após semana. Como mensurar isso? Como pagá-la de forma justa, diante do que nos oferece?

Assim como Zélia, existem milhares de outras mulheres, as Marias do mundo, que se doam, deixando inclusive seus filhos e parentes em segundo plano, buscando um sustento capenga, muito aquém do mínimo necessário. Sim, buscamos compensar parte de suas dificuldades, tratando-a com amor, com respeito, pagando um salário digno, observando suas necessidades, cumprindo com a “nossa parte”. Mas, de repente, me pego pensando: 

- Afinal de contas, qual é mesmo a minha parte neste assunto e em tantos outros, de ordem social?

E a pergunta não surge por questões vinculares, uma vez que nossa relação é sagrada, pautada no carinho e cumplicidade. Mas é de ordem prática, financeira, salarial.

Mesmo pagando algo acima da média do que pagam por aí, o salário de Zélia é mesmo justo? O que justifica a hora dela valer 15% do que vale a minha, por exemplo, só porque tive oportunidade de estudar? Porque meu empenho é mais valorizado que o dela, se, no final das contas, nos doamos na mesma medida?

Marilena Chauí fala a respeito deste assunto no seu livro “O Que É Ideologia”, contando os aspectos históricos desta questão. Conta sobre um período estranho, em que passamos a achar que o saber valia mais que o fazer. Que aquele que sabe deve ter mais poder que aquele que não sabe. Mesmo que este segundo doe a própria vida, de sol-a-sol, nas lavouras, fábricas ou lares do mundo. 

Onde a justiça?

Eu sei que não posso mudar de uma hora para outra esta rede que nos envolve. Mas tenho o dever de construir um olhar crítico a respeito. Enquanto os sonhos da elite se constroem com piscinas e viagens, aqueles que não tiveram acesso às informações constroem sonhos de menores filas no SUS ou um teto para se abrigarem do frio e da chuva. 

E não me venham os elitistas de plantão me dizer que aquele que se esforça chega lá. Oras, me poupem deste discurso individualista, reducionista, absurdo, cego com relação à rede perversa do sistema! Enquanto um consegue, outra centena não tem oportunidade, nem com muito esforço, porque esta ascensão financeira depende de muitas questões e não apenas do esforço de cada um, embora sem este seja impossível alguma melhoria.

E mais: não acredito que aquele que se encosta deve ser apoiado por aquele que trabalha. Mas acredito que o tempo usado de forma útil e produtiva, deve ser reconhecido da mesma maneira, com o mesmo peso e na mesma medida. Que tal salários mais equivalentes, diminuindo o de alguns para que outros subam? Que tal uma redistribuição mais justa? 

Médicos podem alardear que cuidam de vidas e então devem ganhar mais pelo peso de sua responsabilidade. E o que faz a Zélia, senão cuidar de vidas, preparando alimentos, cuidando das roupas, limpando a casa, com sua higienização profilática? Mesmo que ela ganhe menos, nada justifica que seja tão menor este valor!

Recrimino a exploração, é isso.

Não, queridos eleitores pró situação ou oposição, não de trata de campanha, pois até hoje nenhum governo, fosse de esquerda ou direita, conseguiu alterar esta realidade, porque esta situação ultrapassa limites territoriais, até. É, como apontou Chauí, uma questão ideológica, ampla, mundial.

Aquele que não possui conhecimento não sabe o valor exato de sua mão-de-obra. Não conhece sobre mais-valia. Não percebe as garras do sistema.

Distribuir renda não significa bancar vagabundos, mas pagar a quem trabalha de forma justa, mesmo que isso nos custe abrir mão de piscinas e viagens ao exterior. Que não falte comida no prato das pessoas, mesmo que na de muitos desapareça o caviar e a lagosta. Que não falte transporte digno, nem casas, nem hospitais, nem nada. 

Não prego o final do dinheiro, mas um socialismo cristão, em que as pessoas possam olhar para as outras como irmãos e não como concorrentes, servos ou inimigos. 

Minha companheira Zélia vale o tempo que dedica à minha família. E isso não tem nada a ver com o que ela acumulou de conhecimentos ao longo da vida, mas com aquilo que ela faz de bom para mim e para o mundo.

Sim, eu também me beneficio do sistema, dirão muitos. É verdade. Mas não é menos verdadeiro que isso atinge minha mente e coração e que gostaria que tudo mudasse. Sim, prego uma vida simples. Quem convive comigo sabe do que falo.

A verdade é que é triste o saber sem a força para o fazer. 

Este incômodo no meu coração existe, trabalharei com isso, mas não quero despistá-lo. Não irei dopá-lo com comprimidos ou desculpas esfarrapadas pró self-made-man.

Um mundo justo depende bem mais que de esmolas e separação de lixo. 

Precisa de empatia. 

E, depois dela, de muita coragem para se fazer diferente do que temos feito até aqui. 

O Planeta precisa. 

Todos precisamos de mais justiça, cuidado e amor.